Como um homem inteligente e crítico consegue sobreviver na imbecilidade do liberalismo econômico e da sociedade de consumo? Essa é a questão que movimenta o humor absurdo de “Como me tornei estúpido”, adaptação de Fernando Bonassi para o romance de Martin Page, que Beth Lopes encena com a costumeira mestria. A trama surreal do jovem escritor francês leva o personagem Antoine, um jovem acadêmico de esquerda, a concluir que a inteligência é a causa de seus males e de sua misantropia numa sociedade em que não consegue se enquadrar.
A partir daí, a “busca da imbecilidade perdida” é o leitmotif da saga que impele o anti-herói de Page a uma “corrida para o nada”, orientada pela decisão de se aniquilar, mas com rigor. Assim, emprestando o método de sua experiência acadêmica, Antoine parte para a pesquisa pragmática da estupidez. O primeiro procedimento adotado é o etílico, já que as potencialidades danosas do álcool para a lucidez e a inteligência não podem ser menosprezadas. No entanto, o jovem neófito cai em coma antes de completar a experiência. A decisão seguinte é o suicídio, também aprendido em curso de especialização, mas igualmente mal sucedido.
O próximo passo planejado pelo personagem, a lobotomia, também resulta em fracasso. É nesse ritmo vertiginoso que o autor expõe a jornada nonsense de Antoine nos múltiplos experimentos de iniciação à estupidez. No entanto, talvez o fascínio maior da experiência esteja no contraponto que certos dados prosaicos fazem à trama delirante, com referências cotidianas e explicações racionais que pontuam as diversas etapas do processo e permitem, às vezes, aproximações com o realismo.
Ou, ao menos, com um certo realismo excessivo nos dados de realidade, em que o teatro contemporâneo tem se especializado. E que justifica a menção que muitos críticos fazem à “imaginação selvagem” do autor, que sem dúvida o aproxima do surrealismo, especialmente de alguns procedimentos de Boris Vian, por quem se declara influenciado, e especialmente Roger Vitrac. A inversão dos valores burgueses e a crítica à sociedade de consumo, via ironia e exagero, lembram muito Victor ou as crianças no poder, mas, ainda assim, é visível a distância que separa a abordagem surrealista do niilismo híbrido de Page, que integra elementos díspares para melhor atirar em várias direções.
Aproveitar as frestas desse hibridismo é, sem dúvida, o trunfo maior da encenação. Com familiaridade nos procedimentos de composição do ator e ancorada em partituras físicas de extremo rigor, Beth Lopes modela com requinte o complexo mundo contemporâneo de Page, permitindo que os atores se alternem nos papéis para melhor projetar a adequação progressiva ao modelo comum, que todos repetem com exatidão. Dessa forma, a progressão dramática para a imbecilidade tem contrapartida cênica na figuração do nivelamento, da série gestual consentida na repetição dos mesmos fragmentos pelos atores, que ganham, assim, a sintonia de um corpo coletivo.
O “jogo de vozes e máscaras sociais” é, dessa forma, denunciado ao espectador, e funciona como crítica inteligente à busca da estupidez.
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