terça-feira, 14 de agosto de 2007

Encenação

O espetáculo foi concebido a partir da história do jovem Antoine, personagem do romance de Martin Page, cuja existência inadequada e mesmo assim singular, aponta para as contradições da vida contemporânea. Na medida em que a sabedoria de Antoine
revela-se com todo o requinte do conhecimento, paradoxalmente e na mesma intensidade, mostra-se inútil em um mundo com interesses voltados para os efeitos promissores das inovações tecnocientíficas.

Neste terreno inóspito para a sensibilidade do personagem, perdido no mundo racional e complexo dos tempos pós-modernos, é que o autor vai questionar, com humor cáustico, se o homem ainda é a medida de todas as coisas. O humor, muitas vezes visto como um
gênero menor mostra-se nesta obra tão bem colocado que se projeta como uma abertura para a valorização dos desejos e subjetividades que escapam a “serialização” dos modos sociais dominantes.

A trajetória do personagem passa do burlesco ao dramático para encontrar a única saída para ser aceito na sociedade: tornar-se estúpido. Assim como o autor conduz seu personagem através de uma divertida e nonsense busca pela adequação social, os atores se revezam representando cada um de uma vez, as escaladas de sua investida em direção à sua idiotice. Cada tentativa é uma tensão emocional a mais que o desempenho dos atores incorpora à vida do personagem. É como se os atores quisessem juntar os pedaços de Antoine e encontrar um sentido para a sua existência. O que se propõe é um jogo de alteridades que alterna as diferentes vozes e máscaras sociais que o personagem, em alternância, põe e tira. A encenação propõe, portanto, que os diferentes discursos e etapas da personagem sejam conscientemente conduzidos pelos atores, com se estes falassem as “palavras próprias alheias”, como diz Mikhail Bakhtin.

O jogo que se propõe retoma, ludicamente, o tema do alter ego.
Desta forma, as idéias e sentimentos que permeiam o texto tratam da singularidade das relações de amizade e de amor, mas também, não poupam críticas a selvageria da sociedade de consumo.

Uma das qualidades mais interessantes de Page é a sua capacidade de captar a realidade contemporânea e materializar em imagens divertidas, cheias de citações e piadas de seus artistas preferidos, sem deixar de lado a ironia mordaz. A polifonia deste palco de vozes possibilita à encenação um fluxo de ressignificações organizadas. Assim, o espetáculo constrói um discurso que ultrapassa os limites da palavra para criar com o corpo do ator, com a iluminação, com a música e com o espaço uma espécie de texto cênico, dando legitimidade ao ato criador.

A adaptação do romance para o teatro segue o desafio de cruzar tempos, lugares e narrativas diferentes sem perder o fio condutor proposto pela trama do autor. Assim o lugar onde tudo transcorre é a biblioteca do apartamento em que Antoine vive. As cenas que se sucedem transformam o lugar melancólico em um cenário de desvario exuberante, e o ambiente ganha a deformação surreal com a intensidade e ritmo dos acontecimentos. O apartamento de Antoine é uma espécie de palco íntimo para onde todos as lembranças, os sonhos, as expectativas convergem e se dissipam.

Em “Como me tornei estúpido” todos os instrumentos do teatro se integram para emoldurar o imponderável dos desejos mais profundos e intensos quanto aqueles que não revelamos.

Beth Lopes - Diretora

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